Pratos quebrados.
Minha mãe tinha um jogo de jantar que só usava quando ia alguma visita lá em casa. Eu adorava comer naqueles pratos brancos, bordados. Gostava também de tirá-los da peça da sala e ir arrumando na mesa da sala de jantar, porque nós, da família, fazíamos as nossas refeições na copa. E com outro jogo de jantar, mais 'simples'. Decerto que minha mãe sabia o que estava fazendo, já que se usasse corriqueiramente os pratos 'das visitas' iam acabar quebrando e daqui a pouco não teria mais nenhum.
Minha mãe se foi e creio que na tentativa de não nos afastarmos, olhando por um ponto de vista bem subjetivo e particularmente psicológico, dividimos entre eu, meu pai, meu irmão e minha irmã, esse jogo de jantar. Uso esses pratos, desde então. Essa semana eles quebraram. Os últimos. Caíram sozinhos e quebraram. Todos. Num primeiro momento fiquei uns 5 minutos olhando aqueles pedaços espalhados e pensei na importância daquilo em mim. O fio que havia entre o passado e o meu presente. Sobre o que a vida diz pra mim agora, no presente, sobre meu passado, para meu futuro.
Embora sinta muito a perda desse vínculo, eu também já havia me acostumado aos pratos brancos. Deixaram de ser aqueles desejados, guardados, quase sagrados. Comia neles como comia em qualquer um. Havia um que eu escolhi para ser meu preferido, mas era igual aos outros e para mim tanto fazia comer neles ou em qualquer um, dos outros que não eram os brancos. Eu precisava e preciso me desapegar do passado, quando ele fica grudado em mim e não volta mais.
Minha geração não faz mais isso. Não guarda mais nada, quando se trata de utensílios de cozinha, de casa, etc. Usa tudo e isso é muito bom, já que equaliza o valor e a importância da família (não que minha mãe não nos valorizasse). Fiz uma analogia com a minha vida, como sempre, e fui acometida de uma sensação bem grande de leveza. Estou aprendendo a me desapegar do passado? Ao mesmo tempo que senti a perda, sabia que precisava me conformar com ela e simplesmente lembrar daqueles pratos com singeleza de coração.
São só pratos. Só serão pratos. Só foram pratos. Meu desapego partiu do ponto (e do contraponto) de que a partir dali minha vida também tem que ser quebrada as vezes e há coisas que não voltam, não colam, embora tenham tido um significado em minha existência. Eu passei dos cinco minutos ali, abri a peça da sala e vi que há algumas xícaras do mesmo jogo de jantar, mas que eu nem uso. Preciso me desapegar do passado, sabendo da eternidade que algumas coisas imprimem, mas tocando sempre em frente.
Sinto que a cada dia o futuro se mostra mais e eu ainda tenho muito futuro pela frente. Minha mãe guardou muito aqueles pratos e quase não aproveitou deles e nem deixou que nós aproveitássemos naquela época. Por certo as visitas nem se lembram mais em que pratos comeram lá em casa. Eu me lembro e quero saber aproveitar tudo que tenho, agora, nesse momento, em que estou pulsante e viva. Vou comprar pratos novos, talvez bonitos, mas vou usá-los sabendo que eles se quebram, assim como o passado.
Fica a memória, a lembrança, a sorte de ter tido a graça de usá-los, de aproveitá-los muito. Da mesma forma a vida. Vamos viver, tentar engavetar desilusões, guardar o que for bom. Comer sabedoria em pratos sólidos e recheados de delícias, bons amigos, amor e compromissos que só somem (de somar). Isso não se quebra, não viram cacos, nem são fúteis, que podem ser substituídos, simplesmente. Na ida dos intocáveis últimos pratos da família, quero só as lembranças do tilintar dos talheres, da risadaria na mesa, agora num novo formato de gratidão pelo meu presente. Que venham muitos pratos novos.
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