'...todas as cartas são...'




Cartas, ah, as cartas de antigamente. Só quem cresceu escrevendo e recebendo cartas entenderá meu saudosismo. As cartas eram ansiosamente esperadas, talvez porque fossem as respostas ao que havíamos perguntado, mas também porque eram, sim, um bálsamo finalizador e curador da tal ansiedade em recebe-las.

Para mim era sempre um ritual escrever cartas. Desde pequena minha mãe me ensinou toda uma aristocrática e tradicional forma de escrever cartas, do início ao final, até à postagem. Me colocava sentada na mesa da sala grande da casa onde morávamos, pegava aquele bloco de papel que era específico para escrever cartas, com aquelas folhas fininhas, delicadíssimas, e, de início, por ser pequena, escrevia com lápis, para poder apagar os prováveis e normais erros pueris.

Aos poucos pude ir escrevendo de caneta. Começava sempre e invariavelmente com o cabeçalho, tipo: "Itapetinga, 22 de novembro de 1975". Depois, cerca de 3 linhas abaixo, a saudação: "Querida prima, Laura" (com quem me correspondia sempre). Mais 3 linhas abaixo, considerando o que chamaríamos hoje de margens, recuos e espaçamentos, começava o texto, quase sempre dando as noticias dos meus estudos, notas na escola, causos da família e etc. Para finalizar, o ultimo parágrafo devia ser sempre com desejos de saúde, harmonia e informações sobre desejo de rever e saudades.

Quando cresci, mandava cartas, muitas cartas aos amigos, admiradores, agora com papéis de cartas decoradinhos e, sempre amava, com todas as minhas forças, amava, receber as respostas. Ver aqueles envelopes endereçados a mim, com meu nome como destinatário, era de um prazer indizível. Abrir, sentar em meu quarto com o coração aos pulos e começar a ler aquela vida dentro daquele papel era como tocar a pessoa. A caixa de cartas era uma galeria de mais vida ainda, com palavras saltando e pessoas, boas e ruins, tagarelando ali dentro. Rasgar uma carta era matar seu ódio, era desenergizar a relação, era guilhotinar sentimentos.

Dali saíam risos, choros, despedidas, reconciliações, curas, amores e muitos sentimentos diversos. Esse controle de emoções, esse hiato entre escrever e receber as respostas era, ao mesmo tempo, devastador e sensacional. Mas, dizíamos. Escrevíamos, registrávamos ali, documentávamos no papel tudo que estava em nossa mente e sentimentos. Não tinha mais para onde correr. "Mas, você escreveu isso naquela carta!". Ouvi de alguém que não escreve mais nada a alguém com receio do compromisso ou comprometimento documental que isso implica. Que lástima.

O etéreo significado disso de vez em quando me vem à cabeça, porque hoje temos tantos meios rápidos e instantâneos de comunicação e somos muito, mas muito mais ansiosos e não conseguimos curar essa nossa ansiedade. Me impressiona o fato de já ter testado meio que me 'afastar' de alguém, apenas me afastar, sem nada lhe escrever, sem nada lhe dizer, apenas para testar a sua proximidade, seu carinho, a importância que dá a mim e à nossa relação, dentro de uma periodicidade íntima que travávamos e simplesmente, nada. O 'amigo' não lhe procura mais, não escreve, não sente a sua falta, ou, se sente, apenas não lhe diz. Por que?

Dizíamos, escrevíamos nas cartas tudo que tínhamos a dizer, já que, se estávamos longe (ou mesmo perto), talvez não tivéssemos mais outra oportunidade. Hoje podemos dizer LOGO e não o fazemos. Lembro que já reatei namoros que achava impossíveis serem resgatados, escrevendo uma carta para o rapaz e, que delícia receber flores como resposta ou um bilhete ou recado através de um amigo para aquele sorvete reconciliador.

Das cartas, com as caligrafias, entendíamos as alterações de humor, a raiva, o amor. Postais de viagens, enviadas todos os dias, dos lugares aonde passavam os amigos e familiares eram sinais de muito carinho, porque o movimento de comprar, escrever, postar, nos dava a deliciosa sensação de pertencimento. Sim, sou extremamente saudosista e morro de saudade daqueles dias, daquele tempo. 

As cartas documentavam as relações e nenhum e-mail ou mensagem em tempo real supera aquele barulhinho de cartas sendo abertas e até de canetinhas perfumadas. Nenhum 'inbox' saberá guardar tão bem e depois divertirá tanto. É lembrar com carinho apenas, agora, transformar, se adaptar, se conformar com a volubilidade do que se diz e se escreve, tão rapidamente, hoje. Sem mais caixas para guardar absolutamente nada.

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