Para mim era um dia como outro qualquer. Não estava trabalhando e estava envolvida nos meus afazeres domésticos, não tão apreciados, mas necessários. Sozinha em casa com o filho ainda pequeno, eu já era mãe, desde os 19 anos . O telefone tocou e quando atendi, minha irmã, da cidade onde meus pais e familia continuaram morando, com a voz embargada disse algo que me preocupou mais pelo seu tom de voz do que pela notícia: minha mãe havia tido um AVC e havia sido hospitalizada. Minha irmã é enfermeira e eu sempre confio no que ela diz quando o assunto é doença. Eu morava em outra cidade, quase 5 horas mais longe. Parecia que ela sabia o que ia acontecer, disse para pegarmos a estrada, que precisávamos ir, eu, meu marido e meu filho. No caminho lembro-me que fiquei pensando em várias coisas que ACONTECEM COM OS OUTROS e jamais acontecia comigo..

Chegando, fomos direto para o hospital e minha mãe já estava na UTI. Insisti para vê-la e permitiram. Ela estava muito agitada, sentia muito calor sempre e estava com muitas sequelas do recente derrame. Perguntou pelo meu filho com a dicção comprometida, com muita dificuldade e eu fiquei sem saber o que dizer a ela. Fiquei sem palavras e só consegui passar a mão em sua testa, enxugar algum suor e ficar ali, olhando pra ela. Desse momento em diante ela entrou em coma. A vi mais uma vez ainda em coma, dessa vez, só uma gotinha de suor rolava na sua testa e eu enxuguei de novo. A UTI era uma câmara gelada e mesmo assim ela suava. Recebemos um chamado de um médico, e fomos conversar com ele. Avisou-nos que minha mãe já havia tido morte cerebral. O nome do médico é Ebenézer, que tem como significado literal “pedra de ajuda”, ou "até aqui nos ajudou o Senhor". Eram informações técnicas que até então para mim não faziam muito efeito, já que o coração dela pulsava e segundo os médicos era muito bom.

Eu não conseguia chorar. Sentia uma coisa estranha, tentava sublimar aquilo, transferir para alguem, abraçar alguem como se fosse eu mesma e dizer: "oh, tenha confiança, ela vai ficar boa". Mas eu não conseguia. Só acontecia com os outros aquilo, comigo não. Eu só tinha 24 anos. Eu precisava muito da minha mãe ainda. Sua PRESENÇA era pilar. Ela era o centro de tudo, da família, das festas, da alegria dentro de casa, da organização, da historia da minha vida. No quarto dia de internação na UTI, de madrugada o telefone tocou. Eu já sabia o que era e nem havia dormido ainda mesmo.

17 anos depois e não há um dia que não me lembre dela, em coisas corriqueiras, no afã de pedir conselhos, de requerer a sua presença, bastava sua presença. Minha mãe era especial como a maioria das mães. Era aquela mãe do 'avental todo sujo de ovo', que fazia a melhor comida, os melhores pavês. Era aquela mãe que trabalhava muito e sempre tinha tempo para os filhos, adorava a casa dela, as arrumações, plantas (alfinetes nos xaxins, avencas, samambaias penduradas). Minha mãe tinha uma risada única. Ela sorria muito e eu so consigo me lembrar mais dela sorrindo. Não quis olhar mais para seu rosto. É cruel ver alguem que voce ama dentro de um caixão, 'caixa' feita pelos homens, pela cultura de um povo para enterrar alguem (ou seja, jogar terra mesmo). Não posso tambem cheirar um pó "Compacto" que lembro dela, não saía sem. Como eu gostaria de ouvir sua voz de novo chamando o meu nome, de deitar na sua cama, sentir um cheiro de cama de mãe que parece que só o cheiro de cama de mãe tem mesmo. Ouvir os talheres batendo na mesa de novo, ela chamando a gente pra almoçar. Nem vou aqui voltar muito no tempo de criança, essas coisas, porque não tenho e nem vou jamais ter condição de escrever isso sem chorar muito, porque eu tive a infancia e a melhor familia do mundo e jamais pensei que um dia tanta coisa fosse contecer comigo.

Só acontecia com os outros. Como assim? Como assim que não tenho mais mãe? Como assim que não comi mais aquele macarrão de domingo, aquela galinha cozida de domingo, salada, pavês na geladeira e visitas que a amavam pela sua bondade e generosidade? Eu precisava saber que não sou assim tão mais bonitinha que ninguem e poderia estar livre de qualquer coisa. Perder a mãe é uma coisa doída demais e eu já perdi. O aprendizado foi único e aconteceu mesmo comigo. Foi e acho que é a coisa mais doída que ja aconteceu comigo mesmo. Me ENSINOU, alem de muitas coisas mais, a saber que não estou livre de mais nada nessa vida. TUDO pode acontecer comigo. Cria uma casca na gente. Voce, em meio à guerra, perde uma espécie de couraça, escudo, uma proteção e precisa agora se proteger sozinha, construir suas proprias barreiras, seus fortes. O aprendizado é incontestável, mas o sentimento de solidão e de abandono é atroz. Foi isso que senti e não posso deixar de escrever isso. Gostaria de estar escrevendo um texto alegre para o dia de amanhã mas não consigo ainda. Um dia hei de conseguir, é mais uma luta que preciso travar comigo mesma.

No dia das mães eu não posso ficar mais inteira embora seja mãe. Claro que faço todo aquele trabalho mental e emocional afim de estar bem com meus filhos, mas não posso deixar de admitir a saudade imensa que sinto da MINHA MÃE. Não posso ficar fingindo que não sofro, que não choro muito e me emociono com tantas manifestações de amor entre mães e filhas que já são mães. Sim, eu daria tudo para ve-la, ao menos ve-la de novo, só mais uma vezinha que fosse e passar a mão em sua testa de novo...dessa vez eu não ia ficar calada, ia dizer tanta coisa, tanta coisa sobre meus filhos, ve-la abraçando os netos, mas isso não vai mais acontecer comigo e essa constatação me deixa impotente. Só posso escrever como filha um texto triste embora já tenha elaborado mentalmente muita coisa, de me conformar com a morte, etc, etc, etc.

É..vou tentar ter um quasefelizdiadasmães com meus filhos. Vou enxugar o suor deles e pedir que eles enxuguem o meu...Ficar feliz com eles, claro. Tem que ser hoje, agora, tem que ser todo dia. Tudo pode acontecer comigo e não há tempo a perder. Não há tempo a perder.

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