Todos pretos, pobres, bermudas, saias e shorts Cyclone, cremes nos cabelos, sandalias nos pés. As mulheres competindo quais as saias e tops mais micro dos micros. A fila do banheiro masculino sempre grande. Ali eles cheiram muito pó e fumam mesmo muita maconha. O clima é agradavel do ponto de vista cultural, folclórico, numa visão romântica de...idiotas e imbecis como eu, que tentam retirar sempre alguma manifestação cultural, folclórica de alguns eventos da periferia e das grandes massas concentradas em torno de música ou arte. Doce ilusão e romantismo exacerbado. Um olhar muito puro diante do que me dizem sempre que a realidade é bem outra, que é aquela ali, 'que eu preciso ver'. Mas fico com meu botões a me perguntar: por que a realidade tem que ser aquela e não a minha? É o desnível e a má distribuição de renda. É a desigualdade social, o descaso governamental. É a história que ao longo dos anos detona com o negro, o pobre. É. É isso. É isso que faz a degeneração humana. Tá bom. Então vão pros quintos dos infernos. Chega disso! Por que não dizem não a essa segregação? Por que não páram de travar uma luta meio 'camara de gás' de novo? Lá eles cantavam Reggae, clamam por paz e vida, mas a guerra e a morte ronda e serpenteia. Eu fui lá. Eu fui no gueto, onde ha a periferia que a bizarra da Regina Casé não chega. Eu vi as moças dançando até o chão e os moços atirando pra matar. Eu vi o corpo estendido no chão. Eu vi o pânico na cara de uma mãe e o lamento de gente que já nasceu esperando a 'vontade de Deus', como eu tambem ja nasci. Eu não sou daquele lugar e não gostei do que vi, apenas porque alguem deixou o tal corpo estendido no chão e destruiu a inigualável intenção bondosa do coração de uma banda de Reggae que só tinha amor nos olhos e nas vozes. Amor? É a contradição do amor e da desperança. Me deixe em casa sim com meu preconceito adquirido. Me deixe acalenta-lo, por favor. Não quero ver a realidade não. Não quero que me façam uma lobotomia, que me tirem do meu estado esquizofrênico, psicopático, insano, autista, em apenas não querer saber que realidade é essa que faz surgirem alguns guetos que primam pela marginalidade, embora a maioria ainda lute, com algumas armas que sobraram, pela sã consciencia ali e pela paz. pelo resgate da afro-descendencia consciente, pela dignidade de que 'preto e regueiro não é marginal'. Foi um grão de areia o que vi e nem queria ir ver, mas acabei indo. Eu precisava estar ali, certamente. Aí eu fico quebrada, fico dolorida, porque o meu preconceito se aflora e eu não vou mais ali. O preto, o pobre, o 'marginal', o gueto e eu. Cada um fez a sua parte nisso. Vira geral. Eu tenho tido, e tive ali um pavor que ha muito nao tinha. Pânico, sobressalto, horror. Os olhos de um amigo branco, nascido neste gueto e da sua mãe que ali sonha em ve-lo um grande artista não saem da minha memória. Ele não quer isso mas está ali ainda. Arruma correndo seu intrumento, com um olhar triste, com medo das balas e dos que por certo ouvem a sua musica, tão bem tocada, cheia de sensibilidade. É o preto, o pobre ou o marginal que agora é quem faz a tal realidade que tenho que ver? Eu tenho mesmo que ver isso? Me deixe de novo só e nunca mais me chame que eu não vou. Não vou. O Reggae que ouço nao vem recheado de marginalidade, me deixe ficar só com ele em casa mesmo. Infelizmente, infelizmente. O compartilhar com outros do que se quer é para mim a pulsação mais forte hoje em dia e eu não gosto de adrenalina. Me deixe só, de novo. Me esqueça até, porque eu faço a minha própria realidade, certa ou errada, sã ou insana, sem graça ou animada. Até minha raiva do gueto passar, eu vou libertando minha mente, num retrocesso mental de reconhecer ali tanta gente boa, preta, pobre, independente do narcotráfico dominante e de tantos outros fatores que provocam essa degeneração e concentração de tanta hostilidade por parte de alguns. Aí as pessoas não dormem mais no bairro porque houve um assassinato, as pessoas ficam nas portas, as crianças assistem, e aprendem a realidade. Bosta! Realidade? Bosta, bosta!..Odeio essa realidade e não é a minha, portanto... Me deixe fora do real mesmo, me alienem de novo, e, se possível, me esqueçam, porque infelizmente minha 'consciencia social' vai me fazer esquecer de voces por um bom tempo.
'...todas as cartas são...'
Cartas, ah, as cartas de antigamente. Só quem cresceu escrevendo e recebendo cartas entenderá meu saudosismo. As cartas eram ansiosamente esperadas, talvez porque fossem as respostas ao que havíamos perguntado, mas também porque eram, sim, um bálsamo finalizador e curador da tal ansiedade em recebe-las. Para mim era sempre um ritual escrever cartas. Desde pequena minha mãe me ensinou toda uma aristocrática e tradicional forma de escrever cartas, do início ao final, até à postagem. Me colocava sentada na mesa da sala grande da casa onde morávamos, pegava aquele bloco de papel que era específico para escrever cartas, com aquelas folhas fininhas, delicadíssimas, e, de início, por ser pequena, escrevia com lápis, para poder apagar os prováveis e normais erros pueris. Aos poucos pude ir escrevendo de caneta. Começava sempre e invariavelmente com o cabeçalho, tipo: "Itapetinga, 22 de novembro de 1975". Depois, cerca de 3 linhas abaixo, a saudação: "Querida prima, Lau...
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