In Memorian.


Não consigo esquecer. Não tem jeito. Todos os anos, já faltando um mês, até mais, já começo a lembrar.. e uma coisa, aquela nostalgia, aquele sentimento de abandono me vem. Hoje estão completando 18 anos da morte da minha mãe. Esse sentimento involuntário é, talvez, a maior e mais cortante experiência vital triste que tenho. Poderia agir com indiferença, ir abstraindo, mas não consigo até hoje. Ela morreu muito nova, aos 57 anos e eu tinha 24, ainda com intentos de tantos sonhos em que ela estivesse presente, sendo aquele pilar que sempre, sempre foi. Minha mãe era tudo que se podia pensar em brilhantismo, nao porque era minha mãe, mas era mesmo. Eu a admiraria mesmo se não fosse. Ela era mantenedora, ativa, tinha um poder de unir, arrematar coisas, fazer, desfazer, trabalhar, sorrir, cantar, amar, num altruismo que quase nunca mais vi em ninguem na vida. Sua dedicação à familia talvez a tenha até prejudicado, por ser tão heroicamente prestativa, ultrapassando até limites físicos para isso.

Eu morava em Itabuna na época, casada, com um filho, primeiro neto, que tinha 6 aninhos. Avisei a ela por telefone que ia chegar em Feira à tarde e nessa madrugada ela teve um AVC (Acidente Vascular Cerebral), por conta de uma hipertensão que a acompanhava. Tinha, na noite, após eu avisar que iria chegar com o neto, se agachado ao chão para encerar o quarto que eu dormia, numa casa grande e de tacos de madeira. Nem havia necessidade de 'passar cera', mas ela passou. Na manhã sentiu uma dor de cabeça forte e, como minha irmã mais velha que é enfermeira morava com ela na época, ainda a levou pro hospital sem maiores implicações. Foi direto pra UTI. Minha irmã ligou pra Itabuna e eu antecipei a vinda, já com o coração em frangalhos, porque percebi, pelo pranto da minha irmã que a coisa não estava boa. Ainda entrei na UTI quando cheguei e ela só perguntava, muito agitada, por Daniel, o neto. Estava mesmo muito agitada, a fala comprometida pelo AVC, beijei ela na testa e disse que tudo ficaria bem e que Deus estava conosco. A ultima vez que entrei ela já estava sedada, com aparelhos e apesar da sala fria da UTI, escorria uma gota de suor na testa dela. Eu falei muitas coisas ao seu ouvido, minha mãe já não respondia mais.

Médicos avisam que teve morte cerebral, mas pedíamos ainda a Deus um milagre de vida, porque seu coração ainda batia. Na madrugada do dia 20, eu ainda sem dormir, o telefone tocou e eu ja sabia do que se tratava. Eu não consigo esquecer, acordei hoje no meio da noite com isso na minha mente., ainda chorando muito. Acho que minha mãe não se cuidava e eu comecei a culpa-la por ter me deixado tão cedo. Nunca pensei que isso fosse acontecer comigo. Perder minha mãe? Culpei tambem a Deus e depois a mim mesma por não ter dito, feito a ela tantas coisas mais, aproveitado o tempo que estivemos juntas aqui nessa terra. A morte vem assim, trazendo sempre esse sentimento de impotência e frustração. A falta que ela deixou, a sua ausencia extremamente sentida até hoje, me revela coisas extremamente surpreendentes, entre elas, a de que muita coisa em minha vida não seria como é hoje se ela estivesse viva. Sim, ela era uma segurança meio 'invisível', aquela ponte que voce atravessa tanto que nem percebe a falta que ela faria. Sinto como se um pedaço de mim tivesse ido ali naquele dia e talvez muitas escolhas que fiz depois disso, não teria feito se ela tivesse pertinho, talvez por ela, só por ela. Sinto falta do seu sorriso, das suas gargalhadas altas, da sua sempre presença, do seu 'mingau de cachorro' nas minhas doenças, que mais vinham com dengo do que com força no alimento. Sinto saudade de tudo que ela significava pra mim: do tilintar dos talheres à mesa, das risadas dos filhos, de tudo que representava minha vida em família. Lembranças da minha infancia deliciosa me vem à mente, das rodas de cantigas na roça em que ela liderava com os filhos e filhos dos trabalhadores, com seu livrinho de 'cantigas de roda', da minha educação primorosa, enfim...

Tenho meus filhos hoje e tenho muito medo ainda da morte. Muito medo, não vou mentir. Sei que depois de tanto tempo alguns sentimentos se perdem, como aproveitar cada minuto com as pessoas que voce ama, nao dar valor a bobagens, acarinhar, antes que a morte venha e esfrie os corpos ainda quentes, e separe, e leve. Quando meus filhos chegam perto de mim hoje suados e vou beija-los, lembro-me daquela gota de suor que escorria no rosto de mainha, fria, inerte e adoro o suor deles, quente, cheio de vida. Esse não é um texto alegre, é um texto triste mesmo. Tenho refletido sobre varias coisas na vida e a sensação de valorizar o que é merecido me vem sempre. Perco tempo ainda ou deixo o tempo passar. Sou tão boba ainda e me perdi e me perco ainda tanto em prosopopéias vãs, inuteis. O valor da VIDA é tão outro e o MISTÉRIO da morte ainda não nos faz parar de perder tempo com tantas coisas torpes. É a saudade que nos leva à reflexão. A falta do corpo da pessoa ali, respirando,. Então, por que quando temos, não nos lembramos do valor disso?

Esta foto aí ela tinha 15 anos e é a foto que mais gosto dela. Seu sorriso nunca mudou e minha mãe era linda, por dentro e por fora. Hoje tô com saudade dela e me permitam chorar sua morte, até quando não sei. Me sinto sozinha muitas vezes e escolhi isso, talvez até por conta de não te-la mais mesmo por perto. Foi uma perda irreparável.Talvez um dia eu consiga não lembrar ou ser indiferente..mas hoje, ainda não. A certeza de céu, de DEUS, no cristianismo em que fui criada é que me conforta, por ela não estar aqui nesse mundo em estado de decomposição, tão violento e desajustado. Ela era um ser especial e por isso foi embora logo. Mas eu sinto saudade, muita saudade..Uma saudade que a vida e a morte, mesmo com tantos mistérios, são incapazes de ainda tirar de mim.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

'...todas as cartas são...'

Poema declaratório.

Infame.