ABORTANDO A ELEIÇÃO.
'Brasileiros e brasileiras! O capeta está solto! Empunhemos nossos terços e Bíblias e até Alcorões, se os houver! Herodes brande a espada afiada contra as criancinhas do Brasil! Ergamos a fogueira! Queimemos os hereges! O aborto e os gays estão espreitando pela janela!
Gente do céu! Que tiririquice! Que babaquice mais que medieval! Que onda inquisitorial grassando em pleno século XXI! A caça aas bruxas. O extermínio dos veados. Cruz-credo! Xô, Satanás! Estamos apenas tentando eleger um presidente para o Brasil. Estamos discutindo propostas e projetos para uma boa administração do Brasil. Aborto, gueisismo, pílula, camisinha, não é prioridade do momento.
O processo eleitoral corria tranqüilo, dentro dos princípios democráticos: discute-aqui, denuncia-ali. Promete-isso, condena-aquilo, tudo numa boa. De repente a serenidade é detonada por uma horda de aiatolás, talibãs, mulás, numa gritaria ensurdecedora contra os que ameaçam o poder do Altíssimo. Alguns vestidos de batina (ainda!), outros de mitra e báculo, outros de terno e gravata ostentando Bíblias, todos ecumenicamente de dedo em riste acusador: “Ela é a favor do aborto; ela apóia o casamento homem com homem, mulher com mulher; os dois defendem a distribuição de camisinhas até para as crianças da escola.”
Deus do céu! Que atraso! Que tiririquice! Pra começar, arbitrar sobre aborto e formas de casamento é da competência do Congresso Nacional e não do presidente da República, que apenas sanciona ou veta a disposição do Congresso. Além do mais, aborto e casamento gay nem estão em pauta hoje.
Mais importante e pertinente agora é ouvir dos candidatos suas propostas e seus projetos concretos quanto à saúde, educação de qualidade, distribuição de rendas, segurança da população, criação de empregos, formas de apropriação ou não do Estado, relações diplomáticas e econômicas com outros países, transporte, saneamento básico, liberdade de imprensa, desenvolvimento do país, programas sociais, etc.
E mais: estamos num país democrático, regido por uma Constituição Civil e não pelas tabuas da Lei de Moisés. É um país democrático e laico e não teocrático, apesar de supostamente religioso. Sua capital é Brasília e não o Vaticano, nem a Canção Nova, nem a Assembléia de Deus, nem a CNBB.
Tentar manipular a consciência do eleitor, ameaçando-o com a ira de Deus, é injuriar o próprio Deus que nos criou livres. O dia em que o povo tiver que consultar um aiatolá de plantão tipo pastor Silas Malafaia, ou um Padre José Augusto para votar, é melhor rasgar o título de eleitor e o estatuto da maioridade civil. O que vem se praticando em meios religiosos no momento é o aborto da eleição, da democracia, da Constituição e do bom senso. Xô, Satanás!'
(Padre Otto Dana - Pároco da Igreja Sant’ana em Rio Claro , SP.)
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