Flor de Lotus.

Passava todos os finais de ano em Salvador, de preferência na muvuca mesmo, na Barra. Pra mim era sagrado ter que pisar os pés na areia daquele mar, pular aquelas 7 ondinhas. De 2005 para 2006, resolvi ir de ultima hora, já que não havia programação alguma. Como sempre, fiquei num Albergue de amigos chegados, que infelizmente não estavam por lá. Tudo bem curtir o Reveilon sozinha. Não me é estranho e imaginei que não ficaria tão sozinha assim, já que ali não se fica sozinho mesmo, e mesmo se ficasse, não é problema pra mim o ficar só.

Cheguei já quase em cima da hora e realmente a movimentação já estava enorme. Tomei um banho, vesti a roupa de Reveilon, um vestido azul, e sentei na área externa do Albergue, dando um tempo, para mais perto do horário chegar até à praia, o que não é nada fácil. Tem que se atravessar até hoje, uma multidão. Fiquei por ali sozinha mesmo, mas observei que uma moça, alta, mas bem alta mesmo, bonita, com um aspecto meio oriental, estava sozinha também e ficava sempre olhando em minha direção.

Imaginei que fosse hóspede, que gostaria de interagir, já que hóspedes ali sempre interagem mesmo. Dito e feito para o fato dela estar sozinha, embora não fosse hóspede. Ela se aproximou de mim e perguntou se eu estava hospedada, sozinha, etc, pra puxar um papo, claro. Falei que não, que era amiga dos proprietários e sempre vinha todos os anos passar o reveilon na Barra, etc. Ela sentou e começou a conversar comigo, como se fôssemos já amigas de infância. O nome dela era Lotus.

Lotus era uma moça bem alta, bonita e, segundo ela, moradora ali da Barra mesmo. Seu nome diferente e seu aspecto me chamaram muito a atenção, já que ela poderia estar ali rodeada de amigos. Mas não. Ela se dizia muito triste porque morava com a avó e a avó estava muito doente. Se aproximando o horário da passagem de ano, resolvemos então ir, enfim, à praia. Ela perguntou se podíamos ir juntas e retirou de dentro da bolsa uma champanhe. Ri muito com isso porque comentei que ela poderia ter varias outras coisas na bolsa, tipo uma arma branca. Jamais imaginaria que ela tivesse uma champanhe ali dentro.

Começamos a caminhar até à praia e a multidão estava maior do que imaginei. Era muita gente. Até pensei em desistir, mas Lotus não deixou. Ela era alegre, entusiasta. E o que aconteceu daí em diante nunca mais saiu da minha memória. Entramos no meio daquela multidão muito corajosamente, já que era mesmo uma multidão imensa e não me lembro quem estava tocando naquele ano, no grande palco que se arma no Farol da Barra, até hoje. Como Lotus era alta, ela ia na frente, me puxando sempre. Os fogos já iam estourar e a nossa preocupação era chegar até ao mar. Ela me disse várias vezes que queria muito agradecer pela avó, e toda vez que falava saiam lágrimas dos olhos.

Quando estávamos no miolo da 'muvuca', de repente, de onde surgiu eu não sei, me aparece uma fila de Hare Krishnas, originais, com aquelas vestimentas cor de laranja e aquelas carequinhas apenas com um maço de cabelo pendurado. Lotus então, sem hesitar, entrou no meio dessa fila, que ia abrindo caminho como Moisés no Mar Vermelho. Ficamos entre eles, e eles seguravam em nossas mãos com força, como se fossemos tambem parte da fila. Ríamos uma para a outra e nos entreolhávamos surpresas com isso, porque eles abriam caminho como se estivessem nos levando mesmo ao mar. Eles nos levaram até à praia, me deixando pasma com essa 'ajudazinha' talvez dos céus, ou seja lá de quem tenha sido. Sem eles jamais teríamos conseguido chegar ao mar em tempo. Se despediram da gente com beijos na testa e simplesmente voltaram pra multidão.

Os fogos começaram a estourar. Era já o novo ano que se iniciava. Entramos no mar e Lotus se ajoelhou ali mesmo, chorando muito e meio que gritando, falando em voz alta, orando, em prantos, agradecendo a Deus por tudo. Não, não nos conhecíamos, mas ela falava tudo que vinha à cabeça: que agradecia por sua mãe, embora ela a houvesse abandonado, que agradecia pelo pai, mesmo isso, mesmo aquilo, e que agradecia pela avó dela, que era o amor da sua vida. Ajoelhada, ali, no mar, sem se importar comigo ou com quem quer que fosse. A essa hora eu já estava tambem emocionadíssima. Estouramos a champanhe. Lembro-me que estava la um gringo que todos os anos vem passar o reveilon em Salvador, com uma manga, é, a fruta manga mesmo, para entregar a Iemanjá, segundo ele.

Nos abraçamos, eu e Lotus, de novo como se fossemos amigas de infancia e ficamos ali ainda algum tempo, em êxtase, pelos acontecimentos, vendo a queima linda de fogos, que é realmente um espetáculo. Como ia começar outro show e minha intenção era somente mesmo ir até o mar na passagem de ano, disse a ela que iria voltar pro Albergue. Ela disse que a casa dos parentes dela ficava logo ali proximo ao Farol e que eu fosse conhecer. Assim que chegamos à casa dos parentes, que era uma verdadeira mansão, ela, educadamente me apresentou a todos, vi que era gente muito rica e pensei em como as pessoas são solitárias as vezes, mesmo sendo tão abastadas.

Me despedi de Lotus ali mesmo, depois de tomar apenas uma taça de champanhe com seus parentes. Ela ficou lá e eu voltei sozinha para o Albergue. Nunca mais a vi. Mas guardei na memória aquele ano, já que bateu o martelo que tantas pessoas passam pelas nossas vidas, enviadas pelo tempo, por Deus, seja la pelo que for, para ali fazerem diferença. Lotus era solitária, embora fosse rica e cheia de amigos. Lotus poderia estar em qualquer lugar, com os parentes abastados, num camarote qualquer de alguma festa chique, mas ela preferiu estar ali, sozinha, no Albergue. Perguntei a um amigo depois por ela, morador tambem la da Barra, que disse que a conhecia e me disse que Lotus tinha todos os problemas do mundo na familia por ter sido usuária de drogas por algum tempo e havia abandonado as drogas. Comigo, pelo menos, em nenhum momento ela ao menos citou drogas. Ele me disse, algum tempo depois, que ela havia morrido. Lamentavelmente, se suicidou.

Nossa droga foi a alegria e a grande satisfação de saber que, independente de gênero, status ou qualquer outra coisa, as pessoas se precisam em algum momento. Tudo foi mágico e minha passagem de ano foi especial. Sei que Lotus ali foi alguem importante pra tornar meu Reveilon especial e eu acho que tambem tornei o dela. Ela soube disso. A Flor de Lotus não está mais aqui, em matéria, mas está em minha memória, não deixando eu esquecer que tenho que ser sempre grata a Deus por tudo, e mais, ter mais coragem ainda de sempre tentar...chegar aonde eu quero. Seja ao mar, a qualquer lugar, sozinha..ou não.

Comentários

Rodrigo disse…
Bonita história...
Dolores disse…
Escrevo para dizer que as palavras não seriam necessárias: este comentário é inútil. Mas preciso dizer que meu silêncio aqui existe.

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