Poltrona vazia.

Lá estava ela, sentada naquela poltrona no quarto, cortando as unhas. Eu sentia o cheiro de sabonete e sabia que ela havia tomado banho. Corria então, para o quarto dela. O carpete do quarto era marrom e o cheiro do sabonete me dava tanto prazer quanto pisar naquele carpete, sem sandálias. Os cabelos já meio marejados de branco, os óculos no rosto, cortando as unhas que eu ostento, orgulhosa, iguais, em minhas mãos (são iguais às dela).
E eu amava sentar ao lado dela, sentindo aquele cheirinho de sabonete, amava o carpete do quarto, mas amava mais ainda vê-la, finalmente, no desenrolar do dia, sentada, em paz, com aquele semblante fino, sensível, ora distante, ora, tão perto. Aquela poltrona no quarto era o que eu tinha de acalento, e ela sentada, com seu vestido de 'dentro de casa' me fazia também sentir toda a paz do mundo em meu mundo.
Eu sentava no chão, muitas vezes, falando e falando e ela só me ouvindo. Essa hora do dia tinha um ar especial, eternizado. Nada se comparava ao momento de sentir aquele cheiro. Especialmente nesse dia, em que ela cortava as unhas, olhei pra ela de forma mais especial ainda, nem sei o motivo. Talvez pelos desígnios de DEUS. Do DEUS que ela mesma me fez acreditar tanto e a cada dia, sentir crescendo dentro de mim.
E ali, naquele momento, eu jamais imaginaria que fosse perde-la e não sentiria mais aquele cheiro de mãe. É, o cheiro de mãe. No quarto havia o travesseiro dela, que eu gostava de enfiar minha cara e sentir o cheiro da cama, que só a cama dos pais tem mesmo. Ela jamais iria imaginar também que a vida seria, para mim, tão cheia de perdas. E a primeira delas, seria a perda dela mesmo. Eu também não imaginava.
Tanto não imaginava que gostaria de refazer aquele percurso agora e eu apenas não sentaria, nem apenas sentiria o cheiro de longe. Eu a colocaria dentro de mim, faria uma redoma e pediria a DEUS que a protegesse mesmo de todos os males do mundo. Colocaria ela no meu colo e enfiaria a mão naqueles cabelos fininhos, que sinto tanta vontade de sentir de novo. Não hesitaria em lhe dizer que a amo muito, mil vezes. Cortaria suas unhas eu mesma e diria, inclusive, que aquela poltrona e aquela hora crepuscular era a mais especial pra mim.
Numa saudade que avança dias, anos, percebo que aquela poltrona, depois de vazia, deixou o mundo com menos cheiros pra mim, com menos prazer, com menos cores. Das perdas, foi só o início e ela não está mais para me ouvir, nem me dar seu cheirinho de mãe. E eu sigo hoje sozinha, despida de vestidos de 'dentro de casa', sem cheiros especiais como aquele, porque esse mesmo DEUS, aprouve em levá-la pra perto dele. Ele a merecia mais. A poltrona no quarto, o cheiro da cama, a voz dela, sua fortaleza, as unhas iguais (que me orgulho em ter iguais) são dEle hoje.
Preciso crer que ela estabeleceu um lugar no meu coração, onde, está, não só em um momento do dia, mas em todos, sentada, me olhando, me fazendo sentir os bons cheiros, de todas as belas flores e cores desse mundo, para que eu não me rasgue de saudade. Tudo que eu perco, ganho, vivo, preciso sentir como se ela estivesse aqui, comigo, me fazendo prosseguir, sem medos. Difícil entrar naquele quarto depois daquela poltrona vazia, sem seu cheiro e com aquele vestido sempre pendurado, mas, mais difícil ainda, é saber que nunca vou esquecer o crepúsculo e a sua presença, em mim.
E eu choro sim, de muita saudade, ainda hoje, tateando aquela poltrona nas horas de aflição, doida e ansiosa por olhar seu rosto, pelo menos para me sentir inteira. Enlouquecidamente perdida entre carpetes de tantas cores e que nem existem mais. Tentando sentir os cheiros de mães por aí, sem jamais conseguir prosseguir com o mesmo sabor que aquele dias e aqueles crepúsculos tinham. O entardecer de cada dia tem que ser encarado e as perdas, suportadas. Meu feminino me empurra e me fortalece a ser forte como ela, mas me enternece, me fragiliza, como aquele quadro dela sentada naquela poltrona.
Eu preciso sentar ali e viver, sem ela. Viver, como ela, ali, para mim, mais que vivia

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