Eu, pessoa.
'Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?'
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
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Pensei antes de escrever isso aqui e ainda há tanta coisa escrita na minha mente. Talvez com o sempre receio de ser mal interpretada. Claro, hoje em dia, tudo é processo, em tempos contraditórios, onde a liberdade de expressão se contrapõe a um medo visceral de dizer, de falar. É, medo existe. O que se quer ler, ouvir, é apenas o que se lê e se ouve nas redes sociais. É que as pessoas estão se transformando em semideuses. Mas nem é tão chocante o que vou escrever, embora quisesse que fosse ao contrário. Pessoa já dizia e eu serei até repetitiva.
Ninguém é mais infeliz, sofre por amor, se despedaça de ciúmes, é sentimental, é natural, antipatiza ninguém, se agonia, é gente. O meu receio é da interpretação errônea de que EU seja alguém infeliz, porque escrevo isso aqui. Ou que não amo ninguém, etc. E se eu for? E se eu não amar? Olhando algumas redes sociais, fico estarrecida em como os 'poser' de plantão se proliferam. É gente que se vale do povo simples da roça para se dizer simples; é gente que se fantasia de 'bicho grilo' para se valer de uma boa vida, fumar maconha o dia todo e não trabalhar, num explícito desvio de caráter, de oportunismo. É psicopata, encantador, envolvente, se infiltrando em todos os lugares, e ninguém se dando conta da sua falta de caráter e psicopatia.
É gente que consegue se disfarçar de educado, simpático, mas que, ao menor sinal de 'comprovação' disso, joga tudo por terra, porque educação é de berço e só os que são se reconhecem. É gente que precisa sim se valer de outrem sempre para viver bem, contente, amar aos próximos. Nunca se basta. Nunca vejo se bastar, numa simplicidade, leveza naturais. É muita palhaçada, digna de picadeiro o que vejo. E eu fico de cá, cada vez mais me fazendo de tola, de boba. De forma telúrica, sinto que preciso de subterfúgios metafísicos para me amalgamar a esta vida, sendo bem prepotente agora. Eu sou gente, não sou uma semideusa. Erro, me meto em enrascadas, me envolvo com gente que não devia, mas assumo tudo isso e num piscar de olhos, ou, num processo doloroso (porque sou gente) consigo me afastar e renasço alguém melhor! É, isso existe, se afastar do que não presta, sabia? Não é coisa antiga, de matador, não.
Sou daqui, da terra, vivo e sou uma pessoa normal. Preciso me sujeitar a ler, estar, observar algumas coisas e pessoas de forma normal. O normal hoje quer ser anormal e eu cansei de gente poser. Gente que sequer sabe o que precisa saber, apenas porque o estado de ignorância é o estado mais feliz de se viver mesmo. Meu pernosticismo me humilha, me amordaça, me enclausura e só posso viver assim, conformada, dentro de mim, escolhendo criteriosamente os que ainda quero perto. Ou O QUE quero perto.
Eu vejo é tudo igual, gente que sofre sim, que pena, que quebra a cabeça, mas tenta, diariamente, sobreviver nesse mundo cão, de gente obtusa, mas que se acha e aponta o dedo pros outros, como infelizes, porque não ficam em cima do muro. Existe muito pouca gente especial nesse mundo e eu sei reconhece-las. Eu vejo é um bando de gente que se faz de poderoso (nem que seja se valendo de psicoativos e oportunismos), mas no fundo é um poço de imparcialidade, de tapinha nas costas, de egoismo e egocentrismo, apenas para se enganar de que, sendo assim, está semeando a bondade e sendo bem quisto. Ledo engano. Tenho medo hoje desta felicidade aparente, deste evangelismo de um amor sem prática.
Hesitei em escrever isso aqui e, claro, não escrevi nem metade do que quero. Serei complacente, já que é um desabafo simplório de alguém que hoje enxerga a vida de uma forma bem diferente do que um dia enxergou. É a maturidade, talvez. Uma vida linda, cheia de encantos, macro abrilhantada por sentimentos e desejos muitos subjetivos e que, com certeza, não cabem em redes sociais, em fantasias, em gorros, nem em drogas. Simplifico dizendo que minha blindagem quer ser quebrada e vista por muitos, mas hoje não deixo mais.
É tudo questão de acordar todos os dias sabendo-se gente e não semideus. É tudo questão de olhar a vida como ela é, mas sempre imaginando um universo de possibilidades interiores que por mais que fale, não me farei entendida. Não cabe numa foto, numa frase de efeito, num cabelo rastafari, numa cara cheia de maquiagem. Está além disso. Onde é que há gente no mundo? Estou farta de semideuses, Pessoa.
Poema em linha reta
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
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