Carta aos filhos, hoje.
Naquela noite creio que ninguém dormiu. Da mesma forma que
ela já passou várias noites em claro, seja por nós pequeninos, seja por
preocupação natural de toda mãe. Naquela noite o telefone tocou e pulei da cama, sabendo que ela já estava no hospital e com morte cerebral.
Talvez da mesma forma que ela já havia pulado da cama para trabalhar, para nos
acudir, para suportar nossas dores e rir muito também com nossas alegrias e
conquistas.
Naquela noite de 20 de fevereiro ela morria. Mas vejam só,
meus filhos, todo mundo há de morrer um dia. Todo mundo morre. Mas uma mãe não
deveria morrer nunca. Já li isso, que só as mães deveriam ser eternas. Mas não
o são. E sabe, meu filho? Todos os dias me lembro dela, em como minha visão de
mundo mudou depois que ela se foi, tão nova. Meu filho, não passaria um dia, um
dia sequer que não dissesse a ela que a amava. Não passaria um dia sequer
que não correria para sentir seu cheiro. Não passaria nem um dia sequer que não
olharia cada sinal do seu rosto, cada ruga vindo. Mas se isso já não era tão possível naquele tempo, em que morávamos longe, imagina agora, com esse tempo insano, que nos consome.
Sabe meu filho, é que a vida nos ensina mais nos momentos
mesmo de tristezas e perdas. E depois que ela, minha mãe, se foi, naquele 20 de
fevereiro, há 23 anos atrás, senti que saberia perder QUALQUER coisa. Não estou
aqui dizendo que a vida não continuou. Sim, continua. E como vocês tem suas vidas, que eu acompanho, agora mãe, consigo
também agora me sentir como ela, que ficava ali, de longe, orando, torcendo,
nos deixando aprender a viver. Sendo filha, tinha o caminho mais aberto, do que
agora, sendo mãe. Dentro de todos os meus erros como mãe, tentaria errar menos, ouvindo mais quem era minha mãe. Tentaria errar menos, sendo também filha, para ensinar mais a vocês, consequentemente.
E deve ser por isso que os filhos devem construir mais
pontes que os pais, à medida que vão crescendo e vivendo suas vidas. Já construímos
a principal ponte que nos foi concedido construir que foi o estar de vocês aqui nesse mundo. Já
trouxemos à vida os tesouros que nos foram outorgados. Minha mãe, aos 57 anos, se foi, nos deixou,
partiu para nunca mais voltar e ficamos aqui, pontes sem aquele horizonte, sem aquela construtora. Não há um
dia sequer que não desejaria tê-la aqui, em um 'para sempre'.
A vida de vocês não me pertence mais, meus filhos, e a minha
não pertencia mais à de minha mãe, mas, não há um dia sequer que meus
pensamentos não estejam interligados a
vocês, assim como sei que os pensamentos dela também não saíam de nós. Sinto
uma imensa falta da minha mãe e, inevitavelmente, um dia também irei partir. Na
verdade, a força que tenho hoje, em muitos momentos, tenho a absoluta certeza,
foi da força que tive que ter, ainda nova, na perda da minha mãe. Não quero
aqui colocar um peso nos ombros de vocês, mas apenas abrir vossos olhos para
que se fortaleçam diariamente, com o amor que tenho por vocês.
Porque hoje entendo que minha mãe seria, para mim, para meus
irmãos, hoje, ainda, aquele ponto de partida, aquele pilar. Se já éramos
sensíveis a ela, se a tivéssemos hoje, de volta, seríamos muito mais. Mas não a
temos. Não entendemos muito bem o motivo de Deus tê-la levado tão cedo, mas
aceitamos. E nos fortalecemos. E ficamos mais unidos. E caminhamos, entendendo
mais das sutilezas da vida, cada um a seu modo.
Meus filhos, não sou mais filha de mãe viva, portanto, posso
dizer dos dois sentimentos: há que se cuidar todos os dias dessa relação
filho-mãe, enquanto há vida, há sopro. É que agora sei que naquela noite, tudo
que eu mais queria era ser Deus, para mudar o curso da história. É que sei o que é perder uma mãe e, claro, de forma
simples, aqui, dizer que, só sabe quem passa. Fica a saudade e a ponte ali, sem
mais idas e vindas, que só as mães sabem do que estou falando. E a vida
continua. Só desejo que saibam que estarei sempre aqui, assim como minha mãe
está. A diferença é só o cheiro, a presença constante, esse sentimento que não
há igual, não tem para onde correr. Estou aqui, para pular da cama por vocês,
sempre, meus filhos, espero que ainda por muito tempo e saibam, esse tempo é agora, é
hoje.
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