Desisti de ser mulher.
Eu desisti de ser mulher por tantas e tantas razões mais que escreveria um livro de mil páginas. Obviamente o externo me mostra como uma e surpreendentemente ou metafisicamente meus espaços tenham ficado livres para que eu seja além do que se vê. Desisti de ser mulher e ser delicada. Desisti para ser inteligente e sagaz. Desisti para ser livre. Desisti de ser mulher para bordar minha vida com singeleza, chorar por conta dos hormônios contraventores e morrer de amor quando eu quisesse. Ou nunca mais quisesse.
Desisti de ser mulher. Nenhuma androginia, apenas desisti de ser mulher. Desisti naquele dia que, sentada na carteira da escola, aos treza anos, um sangue quente molhou minha calça, a carteira e eu fiquei assustada, sem saber o que fazer direito.
Desisti também naquele dia que aquele rapaz com cara de santo que frequentava meu primeiro local de trabalho veio por trás de mim e me agarrou, prendendo meus braços, eu com 17 anos e ele com seus trinta e poucos. Fiquei sem movimentos, presa e com muito nojo e quis ser homem naquela hora. Eu bateria nele, de igual pra igual, sem dó nem piedade.
Desisti também naquela hora que sorria espontaneamente e meu pai recriminava, alegando que meus sorrisos e minhas gargalhadas estavam muito. Muito tudo. Mulher tem que ser recatada e pouca. Quis voltar a ser criança naquela hora, sem gênero e sem identidade.
Desisti de ser mulher no dia em que vi aquele cara sentado ao lado no meu trabalho, muito menos preparado academicamente e vivencialmente que eu, ganhar o dobro do que eu ganho e ainda ir tomar cerveja e almoçar com o patrão e com a diretoria. Se eu fosse eu estaria dando pro chefe ou teria que dar. Quis ser igual àquele ser que sentava ao meu lado.
Desisti de ser mulher quando sentei naquela mesa do bar com minha amiga e dois homens se acharam no direito de sentar, sem pedir licença e, quando pedimos com educação que se retirassem, nos ofenderam com todos os tipos de ofensas, publicáveis e impublicáveis. Queria ser um Alien e abduzi-los a um planeta muito, muito distante e ali deixa-los.
Tambem desisti de ser mulher por causa de algumas outras mulheres. Elas são obrigadas a fingir muitas coisas. Fingem que gostam de varias situações e papéis. Fingem que gostam de ser mães, tem que fingir que gostam de ser esposas e fingem gostar de amamentar. Polemicamente eu não consegui ser mulher e não consigo fingir nada, por isso desisti de ser mulher e algumas vão me odiar e outras vão me amar por ter desistido.
Desisti de ser mulher naquele dia também que o tal príncipe encantado virou um sapo horroroso, agressivo e violento e eu me reduzi a um nada. Quando me livrei dele, desisti de ser mulher e comecei a ser o que eu quisesse ser, para ele e para qualquer homo-sapiens. Virei gigante, poste, carro, tinta, papel, tesoura, qualquer coisa que eu quisesse ser. É, fique aí zangada ou zangado por ler isso. Desde que aquele sangue desceu eu sabia que tinha que desistir de ser mulher. Teria que ser alguma coisa além disso. Aquele sangue já me empoderou, antes da palavra ser da moda.
Era demais pra mim ser só o que meu passo ali do que seja feminino me mostrava quando eu andava. Religião, fé, família, filhos, trabalho, dinheiro, solidão, relacionamentos, sexo, dor, parto, estrias, celulites, felicidade. Desisti de ser mulher para poder juntar tudo em um pacote e poder ser feliz. Isso sou eu, não precisa ser você. Seja esposa, filha, mãe, freira, o que quiser ser, mas seja. Talvez esse texto não exclua as sábias 'mulheres de Deus', ao contrário. Não precisa mais ser mulher, só seja. Não é porque está na moda, porque eu desisti de ser mulher antes de ser cult ser empoderada.
Desisti de ser mulher para me perder entre meus sentimentos e silenciosamente envelhecer me sabendo além desses sentimentos, as vezes mal entendidos. Desisti de ser mulher para não morrer de tédio e para não morrer de alegria quando me sentisse homem ou bicho. Desisti de ser mulher para voltar ao que Eva perdeu. Costurar minhas roupas, viver meus coliseus com leões e nunca desistir de mim.
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